Gerando sentido para quem está na ponta da saúde mental: dados e indicadores na RAPS de Aracaju

por Instituto Cactus

28 de setembro de 2021

15 min de leitura

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Projeto piloto de Instituto Cactus em parceria com a Impulso Gov apoia a tomada de decisão com base em evidências na gestão pública na rede de atenção psicossocial da capital sergipana

28 de setembro é Dia Internacional do Acesso Universal à Informação e ainda tem muita gente que não entende a necessidade da data. Afinal, o que tem de tão especial nisso para ter até um dia comemorativo? Fator-chave para a promoção dos direitos humanos, o acesso à informação é essencial para potencializar o melhor uso de recursos públicos, o melhor atendimento na ponta e é uma poderosa ferramenta de mudanças positivas em nossa sociedade.

Para ilustrar a importância do acesso à informação com exemplos práticos, vamos apresentar o uso de dados em indicadores na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) de Aracaju (SE), projeto piloto do Instituto Cactus em parceria com a Impulso Gov. Pioneira no Brasil, o objetivo da intervenção é definir os principais indicadores de serviços de saúde mental públicos para avaliá-los e, posteriormente, aprimorar os serviços de atenção psicossocial do SUS.

Ainda no começo da fase de implementação, o projeto já aponta alguns caminhos para a apoiar tomadas de decisão com base em evidências e avançar na otimização dos recursos públicos e também já rendeu frutos positivos para os trabalhadores locais. Após o final da fase de diagnóstico, Chenya Coutinho e Mairla Protazio, gestoras do CAPS de Aracaju, compartilharam os achados do relatório final com os profissionais da Rede, e apenas com esse primeiro passo já conseguiram gerar sentido no trabalho realizado até então. O incômodo causado ao perceberem que os dados não refletem com exatidão a realidade do equipamento engajou os trabalhadores a aperfeiçoar os registros e dedicar mais atenção à produção desses dados.

A mudança de postura pode ser atribuída à capacidade das gestoras em tangibilizar a necessidade e importância desse processo no dia a dia de trabalho. Um processo que, até então, era visto como muito burocrático e que dava pouco retorno, passou a ser aprimorado de ponta a ponta porque, finalmente, os profissionais da RAPS viram sentido e utilidade no uso de dados e indicadores. O efeito disso foi “visível nos corpos”, segundo Chenya Coutinho.

A construção dessa cultura do uso de dados e indicadores na gestão pública é um pequeno grande passo para potencializar a implementação de políticas públicas e a formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental. É na percepção dos impactos concretos dessa mudança de postura no cotidiano de seu trabalho que os trabalhadores tornam-se agentes multiplicadores de boas práticas. Como conta Chenya, “a equipe chegou um pouco desconfiada, depois passou por uma indignação ao perceber que os dados não refletem a realidade do nosso território e no final dessa primeira fase do projeto já estão muito mais engajados em relação ao uso de dados”.

Outro resultado preliminar do projeto foi o fornecimento de novos computadores para a unidade, por meio de solicitação feita para a Secretaria Municipal de Saúde de Aracaju a partir do próprio entendimento dos trabalhadores de que esse seria um recurso fundamental para aperfeiçoar o trabalho com dados e indicadores. Infelizmente, não é incomum que muitos equipamentos do sistema público de saúde no país ainda tenham fluxo de dados confusos, já que parte dos registros é digitalizada e parte é manuscrita. “Depois disso, nos reunimos com a Secretaria para encaminhar a demanda e já conseguimos os equipamentos. As coisas já estão caminhando a partir dos pequenos passos com o projeto”.

A iniciativa representa uma união de esforços entre duas organizações da sociedade civil e a gestão pública para apoiar tomadas de decisão com base em evidências, ou seja, os benefícios são para toda a sociedade e as soluções podem ser adotadas também em outros municípios com estrutura similar ao da RAPS de Aracaju. Como lembrado por Chenya, apesar de ser um território pequeno, a RAPS de Aracaju é bem estruturada e a cidade já foi piloto de muitas experiências, como por exemplo o SAMU. “A RAPS daqui já foi a melhor do país e é destaque entre os municípios brasileiros na proporção de CAPS para cada 100 mil habitantes. O que está sendo feito aqui pode ser espelhado em outros lugares similares.”

Fonte: relatório de acompanhamento do projeto, produzido pela Impulso Gov

Esse é apenas um exemplo para mostrar como o acesso a essas informações é importante para o aperfeiçoamento do sistema público de atenção psicossocial. Atender a demanda de mais de 150 milhões de usuários do SUS (Sistema Único de Saúde) que ficam sujeitos à gestão de recursos e serviços realizados pelo poder público, é um esquema altamente complexo. Por isso é de extrema importância que o governo federal e governos estaduais e municipais se dediquem a compreender as especificidades deste campo para direcionarem recursos de forma coordenada e efetiva a fim de garantir ações de prevenção e cuidado às diferentes demandas em todos os territórios do país.

Mas, afinal, o que são dados e indicadores?

De forma bem geral, dados são elementos que constituem a matéria-prima da informação, representam um ou mais significados que, de forma isolada, não conseguem ainda transmitir uma mensagem clara. Por exemplo, o gênero de um usuário do CAPS, por si só, é um dado que se não for atrelado a outros como idade, renda, histórico médico, território entre outros, não constitui uma informação.

“Mapear quem são nossos usuários, em que bairro moram, faixa etária de incidência no sistema, contexto escolar e familiar, entre outros fatores nos ajuda a atuar de forma estratégica”, ressalta Mairla. “Com alguns dados já conseguimos perceber, por exemplo, que temos que trabalhar com adolescentes que sofreram uma interrupção muito grande da vida social, que podem causar comportamentos de risco como automutilação e ideações suicidas e transtornos como crises de pânico e ansiedade.”

Para que essas informações ajudem a melhorar a qualidade dos serviços oferecidos, é preciso identificar e visibilizar os pontos problemáticos dos atendimentos por meio de indicadores que nos ajudem a interpretar os dados e compreender as dinâmicas locais, características e necessidades de diferentes territórios. Os indicadores funcionam como sinalizadores da realidade, orientam a tomada de decisões e ajudam a traçar as melhores ações para alcançar os objetivos.

Outro exemplo de uso positivo dos dados em Aracaju é a interpretação das gestoras em relação à diferença de gênero em algumas unidades do CAPS. A maior parte das usuárias dos CAPS I, dedicados ao atendimento de pessoas de todas as faixas etárias que apresentam intenso sofrimento psíquico, são mulheres, ao mesmo tempo, a maior parte dos usuários do CAPS AD, unidade que presta atendimento a pessoas com transtornos decorrentes do uso abusivo de álcool e drogas, são homens, informação que também reflete os achados do levantamento Caminhos em Saúde Mental, um relatório inédito sobre os caminhos de atuação em saúde mental no Brasil que publicamos recentemente em parceria com o Instituto Veredas.

Essa constatação poderia levar à suposição de que as mulheres usam menos substâncias psicoativas e por isso requerem menor atenção, mas Chenya recorda que é justamente a inadequação dos serviços oferecidos frente às suas necessidades que pode fazer com que sejam menos acessíveis às mulheres. “Se percebemos que tem aumento de incidência de homens em idade produtiva por consumo de álcool e drogas, temos que entender que isso é a consequência, mas a partir do uso de indicadores conseguimos identificar a causa do problema. Vulnerabilidade socioeconômica, desemprego, fome, nesse contexto, são fatores de risco para este grupo”.

O uso de dados e indicadores na gestão de saúde pública do país pode apoiar a priorização de determinadas intervenções, a formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental e a realização de estudos de implementação em diferentes contextos. Pode, por exemplo, ajudar a entender as principais demandas de transtornos mentais que estão em filas de atendimento e que podem se agravar caso não tenham acesso aos serviços rapidamente, informação que apoia diretamente a decisão sobre priorização da fila e sobre ampliação da capacidade do sistema para acelerar o atendimento.

Ou seja, o acompanhamento de indicadores poderia apontar, por exemplo, se a maioria das pessoas com algum transtorno deram entrada na RAPS e não continuaram no tratamento, o que pode indicar dificuldades de acompanhamento nos equipamentos e orientar a busca ativa de pessoas que não retornam aos serviços de saúde. Também pode ajudar a entender a trajetória de uma pessoa dentro do sistema. O fluxo do usuário dentro do sistema, quadros de agravamento e quantidades de procedimento, por exemplo, por si só, podem não ser suficientes para responder várias questões de uma pessoa, o cruzamento dessas informações é o que vale ouro.

RAPS de Aracaju: tangibilizando a importância do uso de dados e indicadores a ponta da saúde mental

Equipe do CAPS de Aracaju. Foto: acervo pessoal

A RAPS Aracaju conta com 7 tipos de equipamentos distribuídos nas diferentes regiões do município e possui cerca de 150 profissionais, entre psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, educadores físicos, oficineiros, psicopedagogos, técnicos e auxiliares de enfermagem.

O núcleo gestor da RAPS Aracaju, representado por Mairla e Chenya, vem trabalhando para aprimorar o acompanhamento e registro de informações sobre os serviços da Rede, passo que vêem como fundamental para melhorarem o planejamento e a execução das políticas de saúde mental oferecidas. Para isso, vem buscando disseminar, dentre os demais profissionais da rede, o entendimento de que o uso de dados pode servir ao aprimoramento dos serviços prestados e acompanhando majoritariamente indicadores de produção e processo.

A multiplicidade de bases, dados e informações e a complexidade dos fluxos de coleta e compartilhamento é um desafio grande para a gestão, já que com vários sistemas e formas de registros diferentes é compreensível que erros aconteçam e dados se percam no meio do caminho. Além disso, a forte percepção de que essas informações não voltem para os profissionais da ponta sempre foram um obstáculo para o melhor uso de dados e indicadores.

Para Mairla, esse ponto era uma das grandes angústias da gestão e já está sendo impactado pelo projeto. “Era muito difícil ter acesso a esses dados e agora estamos nos instrumentalizando para saber como acessá-los e traduzi-los para a comunidade. É possível utilizar e comunicar essas informações de forma clara, simples, acessível e utilizá-las para promover mudanças”.

Outro grande achado deste processo até o momento, segundo Chenya é a possibilidade de medir eficácia e eficiência na satisfação dos usuários. “A gente tinha consciência que os indicadores utilizados eram só de produção, mas isso não é suficiente para dizer se os serviços ofertados eram bons para os usuários ou não e o projeto deu um salto na perspectiva de poder medir também a qualidade do serviço para o usuário”, afirma.

Por que o sistema de saúde ainda não usa dados e indicadores?

Já existem alguns indicadores que são acompanhados em gestões de saúde mental, mas não existe ainda um protocolo unificado e informatizado de forma consistente e também há pouco consenso sobre o que é necessário para avaliar resultados e impactos de saúde mental. Isso porque os indicadores existentes focam principalmente em dados de produção, ou seja, na quantidade de atendimentos e procedimentos realizados, mas não privilegiam informações que apoiam diretamente no entendimento sobre qualidade dos serviços e impactos do serviço na vida dos usuários. Esse dissenso precisa ser destacado porque dele consiste o principal desafio em usar dados e indicadores de saúde mental atualmente: mais do que apenas mapear o que foi ou deixou de ser feito para resolver problemas, precisamos construir indicadores que respondam às metas de sucesso que queremos atingir com as práticas de cuidado ofertadas.

Além disso, para que esses dados sejam convertidos em informações fáceis, interpretáveis, de qualidade, em tempo hábil para a tomada de decisão, é necessário um processo complexo. É comum que gestores não tenham tempo, recursos ou treinamentos adequados para lidar com dados pessoais de saúde de forma assertiva, processo que tende a se agravar com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Na prática, acaba sendo mais um processo burocrático que não traz informações relevantes para apoiar a tomada de decisões no dia a dia de equipes de saúde e gestores e os dados nem sempre são confiáveis.

E, apesar de a coleta de dados já fazer parte do cotidiano de trabalho de alguns serviços e equipamentos de saúde, em geral essas informações são armazenadas em sistemas oficiais de órgãos ou setores específicos e não existe um compartilhamento seguro e uso sistemático por parte da gestão pública. É uma história conhecida: uma pessoa vai a um serviços de saúde mental, como por exemplo o CAPS, profissionais solicitam uma série de informações (às vezes, antes mesmo de começarem o atendimento) e volta pra casa.

Na próxima visita, é a mesma coisa, mais uma vez: informa os mesmos dados, conta a mesma história de vida e se queixa das mesmas questões. Isso acontece porque os sistemas de dados são, na maior parte das vezes, insuficientes para garantir a integração destes registros de atendimentos ou cruzar os dados com outros do histórico de registros dos usuários, além de muitas vezes não existir uma cultura e prática de se incorporar esse olhar e essa análise no acompanhamento terapêutico dos usuários.

Caminhos para o uso de dados e indicadores em saúde mental

O uso sistêmico de dados e indicadores e o estabelecimento de métricas é mais um desafio dentro da grande complexidade que é atuar com saúde mental no Brasil. Como, por exemplo, o poder público pode planejar valores e distribuição de recursos para uma região específica sem saber quais são os principais transtornos que afetam sua população? Como a gestão da RAPS pode decidir sobre a expansão e construção de novas estruturas de atendimento, sobre a contratação de profissionais ou promover ações de prevenção em saúde mental sem entender as especificidades do território e as demandas que não estão sendo atendidas? Como podemos medir a satisfação dos usuários do sistema e o sucesso dos serviços de saúde mental?

Mas também podemos vê-los como grandes oportunidades de impactar positivamente a qualidade dos serviços caso bem utilizados na superação desse desafio, auxiliando o desenvolvimento e monitoramento de políticas públicas que atendam às necessidades de cada grupo e elevem os níveis de bem-estar de toda população, garantindo a perspectiva de saúde integral nos atendimentos e o direito ao acesso à saúde. Nesse processo, a parceria entre comunidades acadêmica e científica, poder público e sociedade civil, reunindo esforços e compartilhando informações, é essencial.

Para Maria Fernanda Quartiero, diretora presidente do Instituto Cactus, é fundamental capacitar gestores e governantes para coletar, armazenar, compartilhar e interpretar dados de forma ética e segura para ajudar nas tomadas de decisões do dia a dia da gestão. “É importante garantir que os dados sejam analisados e transformados em informações simplificadas e adequadas à realidade dos gestores e, para os profissionais que atuam diretamente na ponta desses serviços, essas informações podem facilitar o entendimento da efetividade das ações de prevenção de doenças e promoção da saúde mental. O envolvimento das equipes pode ajudar a construir consensos na criação de indicadores que permitam avaliar os resultados e impactos dos serviços prestados”.

Um exemplo valioso desses impactos, segundo Daniela Krausz, gerente de projetos na Impulso.Gov, é o uso de dados de urgência e emergência em saúde mental como uma intervenção na prevenção de adoecimentos. “O usuário que chega a ser internado por situação de crise na urgência e emergência de saúde mental poderia ter sido cuidado antes se olhássemos para os dados. Se as informações registradas apontam predisposições, comportamentos de risco ou histórico de desistência no sistema, por exemplo, podemos atuar para evitar que ele não chegue a situação de atendimento urgente. Uma ação de redução de danos e também de desafogamento do sistema”.

Para as duas organizações responsáveis pelo projeto, esse grande esforço de desenhar um modelo replicável que visibilize informações que podem melhorar a qualidade dos atendimentos através de dados e indicadores deve ser feito de maneira integrada ao dia a dia da gestão e funcionamento dos equipamentos de saúde pública. A exemplo de Aracaju, é preciso envolver as gestões e profissionais em relação ao bom uso das informações, que podem potencializar o uso de recursos públicos e melhorar os atendimentos.

O marco do Dia Internacional do Acesso Universal à Informação é importante, mas precisamos nos educar para trabalhar para institucionalizar a importância do acesso à informações de forma contínua e permanente. Assim, conseguiremos criar indicadores, trabalhar dados, definir métricas e avaliar o impacto das estratégias de forma que faça sentido no cotidiano das pessoas que estão nesse sistema: atendidos e cuidadores.

 

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